É muito complexo
se comparar uma tradição com outra, tal como, por exemplo, traduzir
orixá como santo, já que se estão relacionando meios e modos distintos
de organizar a realidade, que podem servir de raiz para uma tradução
ou traição. Sendo assim, a tradição de cada povo, como a língua
de cada povo, está diretamente ligada ao seu real, está ligada àquela
possibilidade que cada um tem de ver o mundo, de lidar com o cotidiano,
de sentir emoção, e que tem uma maneira única de ser.
Mãe Stella foi
pioneira em mostrar tal dificuldade em sua batalha contra o sincretismo
religioso, já que, como se pode constatar:
A relação Odudua/Obatalá,
entendida simbolicamente, não representa uma simples relação de
acasalamento do princípio feminino com o masculino. Há um princípio
de completude do outro, de que a vida se constrói de mãos dadas
e de que cada um de nós à medida em que estabelece esta relação,
estabelece um elo mais completo com as coisas que estão à volta.
Significa todo um processo de equilíbrio e de harmonia.
Para se entender
bem tal relação, se faz necessário situar as mulheres do ritual
gélèdès, que representam o culto às YÀMI, as grandes mães
ancestrais.
Odudua simboliza
a grande representante do princípio feminino, sendo o elemento responsável
por todo o poder criador, do poder das mulheres, liderando o movimento
das Iyá-mis, grandes mães ancestrais, que tudo criaram, transformaram
e transmutaram desde o princípio dos princípios da formação do universo.
A sociedade
Gélèdes, que já existiu no Brasil, é um ritual de mulheres que vestem
panos coloridos - diferentes panos mostrando diferentes procedências.
São as diferentes raízes que as pessoas podem ter na maternidade.
A máscara Gélèdès, que cobre a cabeça da mulher vai representar
o mistério, o maravilhoso, na cultura negra. O uso da máscara
significa que eu estou aqui, agora, não falando da minha essência
que está aqui, mas que simbolizo outro espaço, um espaço vivo, um
espaço invisível que é aqui mesmo, que eu não conheço mas sinto!
Sem o poder
feminino, sem o princípio de criação não brotam plantas, os animais
não se reproduzem, a humanidade não tem continuidade. Assim, o princípio
feminino é o princípio da criação e preservação do mundo: sem
a mulher não existe vida, sendo, segundo os mitos, ser reverenciada
e respeitada pelos orixás e pelos homens.
As Gélèdes e
suas máscaras se tornam uma metáfora, sendo uma linguagem para a
mãe natureza. O ojá é um símbolo das Gélèdes porque personifica
o útero, pois ele carrega as crianças e as protege. Através das
Iyá-mi (mães ancestrais) a arte das máscaras é usada para aglutinar
as pessoas que se relacionam como filhos de uma mesma mãe, fazendo
com que o espírito se manifeste através desta máscara, seguindo
e alimentando o espírito humano. Representam o não uso da violência
para resolver questões.
A mulher é a
política e a mulher é o cotidiano. Nas culturas negras a mulher
está presente em todos os lugares. As máscaras tem grande importância
na vida religiosa, social e política da comunidade, mostrando as
diferentes categorias de mulher:
. mulher
secreta - ligada ao divino, serve como passagem e receptáculo
do sagrado no mundo dos vivos, por gerar frutos.
. mulher símbolo político - não usa violência para resolver
as questões, aglutinando as pessoas, vivendo o cotidiano.
. mulher sagrada - símbolo de todos os tempos, pois está
virada ´para o futuro, sempre vulnerável e frágil, mas é aquela
que abre o céu (orum) e deixa lugar para a mudança, o futuro, para
a transformação.
A sexualidade
da mulher negra faz parte da sua essência de princípio feminino,
sendo muitos os mitos que representam a função e o papel mulher
vista como útero fecundado, cabaça que contem e é contida, responsável
pela continuidade da espécie e pela sobrevivência da comunidade.
Não se encontra pecado nesta sexualidade.
Através das
IYÁ as comunidades-terreiros se constituam num verdadeiro sistema
de alianças. Desde a simples condição de irmão de santo até
a mais complexa organização hierárquica, há o estabelecimento de
um parentesco comunitário, como uma recriação das linhagens e da
família extensiva africana. Os laços de sangue são substituídos
pelos de participação na comunidade, de acordo com a antiguidade,
as obrigações e a linhagem iniciática. Todos estão unidos por laços
de iniciação às divindades cultuadas, aos demais iniciados, às autoridades,
aos antepassados e aos ancestrais da comunidade.
Através do rito
se tem todo um sentido de manifestação das mulheres do grupo: rodando,
dançando, se integrando com o cosmos, mostrando que temos consciência
de que somos elementos dinâmicos, de que o movimento da roda - já
que as mulheres são os elementos que dançam em círculo - representa
o altar da criação, da vida, já que a terra está em movimento, o
universo está em movimento e só se conseguirá estar em sintonia
com o universo através do movimento.
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