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Entrevista:
Lelia Gonzalez - Uma mulher de luta*

Jornal MNU - Lélia, em que o Movimento Negro tem contribuído para a cidadania do negro brasileiro? Gostaríamos que você fizesse um balanço do movimento dos anos setenta até aqui.

Lélia Gonzalez - Eu acho que a contribuição foi muito positiva no sentido de que nós conseguimos sensibilizar a sociedade como um todo, levamos a questão negra para o conjunto da sociedade brasileira. Especialmente na área do poder político e nas áreas relativas à questão cultural. [...] E estou pensando, especificamente, nos afoxés e blocos afros pelo papel que eles têm tido de levar essa conscientização para dentro da comunidade negra, embora levem também para fora [...]. Uma coisa muito interessante de a gente observar e tem a ver com um mínimo de consciência de suas raízes, de suas origens culturais. Tanto que o pessoal diz que os negros da Bahia são bonitos. Quando as pessoas dizem isto, não percebem que elas estão se sensibilizando é por uma postura de alguém que sabe que ele é ele mesmo e não um outro, aquele outro determinado pelo poder do branco. E nisso, efetivamente, os blocos afros tiveram uma contribuição fundamental, a ponto de sensibilizarem grandes estrelas da música popular, que não podem deixar de falar nesses blocos afros. [...] Agora, no que diz respeito às questões político-ideológicas, a coisa é séria, a meu ver. O que a gente percebe é que o MNU futucou a comunidade negra no sentido de ela dizer também qual é a dela, podendo até nem concordar com o MNU. Hoje a gente verifica que pintou uma certa autonomia no que diz respeito a algumas entidades aí pelo Brasil, que articulam áreas de ação que não são, especificamente, aquelas que ficam numa política abstrata, genérica, mas áreas de ação no sentido concreto, dentro da comunidade. Para dar exemplo interessante, me recordo do momento da Constituinte, em Brasília, quando eu atuava enquanto mulher negra dentro do movimento de mulheres, no Conselho Nacional. Havia uma passagem de informações porque o Movimento Negro estava reunido lá para fazer suas propostas aos constituintes. E eu me recordo que, de repente, chegou uma mulher dizendo assim: "Olha, o Movimento Negro está reunido levantando uma questão incrível, a questão do crime inafiançável com relação à discriminação racial, a gente tem que trazer isso também para nós". Esse tipo de troca, de contribuição, que para mim era uma coisa abstrata que eu lia nas histórias, por exemplo, do Movimento de Mulheres, do Movimento Negro e do Movimento de Homossexuais nos EUA. E eu verificava uma anterioridade de Movimento Negro na colocação de uma série de questões para o Movimento Feminista que, por sua vez, passou para o Movimento Homossexual e, de repente, você constata isso a partir de sua experiência concreta. Eu acho que isso significa um avanço do Movimento Negro, uma contribuição extremamente positiva. Quer dizer, nós deixamos de ser invisíveis, a verdade é essa. Não dá mais para se ficar escamoteando a questão das relações raciais no Brasil, pois nós estamos aí, de uma forma ou de outra.

Jornal MNU - Nós estamos a dez anos do século XXI, com uma população negra em sua maioria analfabeta ou semi-analfabeta, sem preparo profissional nenhum. Quais seriam as tarefas mais importantes do Movimento Negro para a próxima década, já de olho no século da automatização?

Lélia Gonzalez - [...] nós temos que estabelecer tarefas dentro de um campo concreto e rapidinho desenvolver uma militância muito ativa junto às próprias comunidades negras espalhadas pelo Brasil. Porque não estamos mais naquele tempo (claro, quando for necessário, tudo bem) de só ficar fazendo manifestaçãozinha de rua, não. Temos que nos voltar para dentro do quilombo e nos organizarmos melhor no sentido de dar um instrumental para esses que vão chegar e vão continuar o nosso trabalho. [...] Hoje a militância se diversifica, e ela é obrigada a se diversificar em face dos terríveis problemas que nós temos pela frente. O pessoal da área de informática dá cursos para o pessoal que não conhece, senta e conversa, mostra como é. Assim você instrumentaliza, por exemplo, o pessoal que vai trabalhar na área de educação. Recordo-me de um papo com Darcy Ribeiro, ele dizendo justamente essa coisa. Eu estava defendendo a oralidade, a cultura oral. E ele dizia que achava válido o que eu estava dizendo, mas que não era suficiente. Porque se não souber ler, dança. [...] Acho que o Movimento Negro tem que pensar seriamente essa questão. E sempre levantamos a questão da educação. [...]

Jornal MNU - A tarefa é muito grande, árdua e o sistema não está interessado. Como é que o Movimento Negro se articula, e com quem, para que esta tarefa mínima que é alfabetizar o povo se concretize. O fato de termos hoje governadores negros teria alguma influência, ainda que não tivessem sido eleitos por voto negro explícito?

Lélia Gonzalez - A questão dos governadores negros é muito importante. Eles têm um mínimo de poder para desenvolver esse tipo de tarefa, não há dúvida. Eu acho que o Movimento Negro tem que estar junto desses caras, tem que pressionar. Eles não podem somente ficar lá dizendo: "Olha, sou o primeiro governador negro eleito". É importante que eles percebam a tarefa, a exigência ética que eles têm com relação a sua comunidade. E se é uma exigência ética, tem que ser política também, porque as duas coisas se articulam.

Jornal MNU - Existem hoje no país algumas centenas de entidades negras. Pulverizamos idéias por esse Brasil afora, mas não conseguimos consolidar um programa mínimo não só para o próprio movimento, como para ser assumido por outros setores da sociedade. Como você avalia isso?

Lélia Gonzalez - Nos faltou exatamente esse instrumento de trabalho, uma reflexão crítica muito profunda no sentido dessa articulação aí. Eu acho que nos falta, eu falo isso através de uma vivência e experiência pessoal, um sentido de solidariedade enquanto movimento. [...] A gente percebe que existem algumas exigências éticas, para dentro do movimento, e que o Movimento Negro ainda não tomou consciência delas. Eu acho isso. Essa coisa da solidariedade é fundamental. Falo de uma perspectiva ética, evidentemente, mas estou apontando para o político. E essa solidariedade que vai permitir que você não se envolva com as formas de cooptação que vêm de fora. [...] Em termos de Movimento Negro do Brasil, a nossa proposta não é a mesma do Movimento Negro dos Estados Unidos. ... se nós somos maioria efetivamente, nós temos que lutar pelos nossos direitos, nós não temos que ficar no gueto [...] Nós temos as propostas mais democráticas. É da gente que tem que partir essas propostas de democracia, efetivamente. O sistema funciona justamente no sentido de alijar a maioria, basta você vê, por exemplo, o quadro da classe política: é a mesma coisa desde que o Brasil é Brasil. [...] O sistema tenta nos guetizar, evidentemente, mas nós não podemos aceitar isso, porque ele próprio se coloca pra todo mundo como uma coisa aberta, que não existe aqui discriminação racial, que todos são iguais perante a lei. Mas vamos ter que provar isso mesmo ... A questão da democracia tem muito mais a ver conosco, que somos excluídos, do que com os caras que estão no poder, que não estão a fim, evidentemente. E aí entra a questão dos governantes negros, que terão que provar a que vieram, com relação a sua própria comunidade. Eu vejo os feitores do sistema como uma questão muito complicada, porque eles são muito sofisticados. Eles estão à frente de instituições poderosas e você tem que estar muito atento para ver até que ponto você está no jogo. Mas você percebe que muitos companheiros ganham o jogo, se aliam aos feitores (como aconteceu na nossa história, para que não se pense que os feitores agiam sozinhos. Eles tinham seus cúmplices também), e contribuem para essa dispersão, essa falta de perspectiva, para a falta disso que você colocou, um programa mínimo de ação. Eu me lembro da Zezé Mota, por exemplo. Ela fez uma tentativa em sua área de criar aquele catálogo de atores negros. E o que aconteceu? Qual foi o suporte, o apoio que o Movimento Negro deu para a Zezé Mota? Nenhum. [...] E o trabalho dela acaba se transformando em trabalho isolado, e sozinho você não tem forças. [...] Porque no momento em que neguinho me atinge, não está atingindo a uma pessoinha que é a Lélia, está atingindo a mulher negra, é o movimento que está sendo atingido. [...] O feitor de hoje é o grande aliado que chega e bate nas suas costas etc. E que, de repente, está vivendo às custas de nossa comunidade, se dizendo um grande aliado que faz e acontece. [...]

Jornal MNU - Você aproximaria aí os conselhos criados já em diversos estados?

Lélia Gonzalez - Olha, com relação aos Conselhos, nem tanto. É uma arma de dois gumes. Minha experiência é com o Conselho de Direitos da Mulher, onde nós fomos parar num beco sem saída, porque o Conselho engoliu a gente. Mil propostas, todo mundo querendo trabalhar, fazer e acontecer, o maior entusiasmo. E, no entanto, bastou uma penada de um ministro da Justiça desses aí e acabou tudo. É isso que nós não podemos perder de vista. É claro que nós temos que ter as frentes de trabalho. Como tal, ela é provisória, absolutamente provisória e você não pode esperar grandes resultados dela. [...] São modos que o sistema cria para botar açúcar na boca da gente... E eu fico preocupada é com a disputa que se trava para participar dessas frentes. [...]

Jornal MNU - Fale um pouco sobre sua trajetória no movimento feminista.

Lélia Gonzalez - No meio do movimento das mulheres brancas, eu sou a criadora de caso, porque elas não conseguiram me cooptar. No interior do movimento havia um discurso estabelecido com relação às mulheres negras, um estereótipo. As mulheres negras são agressivas, são criadoras de caso, não dá para a gente dialogar com elas etc. E eu me enquadrei legal nessa perspectiva aí, porque para elas a mulher negra tinha que ser, antes de tudo, uma feminista de quatro costados, preocupada com as questões que elas estavam colocando. Agora, na própria fala, na postura, no gestual, você verificava que a questão racial era... Isso a gente já discutiu muito e a experiência mais positiva que eu tive foi num encontro no Bolívia promovido pela MUDAR (Mulheres por um Desenvolvimento Alternativo), uma entidade internacional que foi criada um pouco antes do encerramento da década da mulher em 1985. Foi ali, pela primeira vez, que eu encontrei um tipo de eco, uma maturidade por parte do movimento, no sentido de parar e refletir sobre as questões que a gente coloca enquanto mulher negra, a dimensão racial que está presente em tudo e você não pode fingir que ela não existe. Mas não há dúvida de que existe um setor do movimento de mulheres que está preocupado com a questão racial. O que eu percebo é que o nosso cultural nos dá elementos muito fortes no sentido da nossa organização enquanto mulheres negras. Uma história que rolou e gera uma grande luta interna com o homem negro, uma questão muito séria dentro do Movimento Negro, um ressentimento muito grande das mulheres diz respeito à sexualidade, porque muitos homens negros preferem as mulheres brancas. Isso é verdade, não dá para você ficar escondendo o sol com a peneira. Eles internalizaram o valor branco como supremo como todos nós, só que a gente está tentando sair dessa. Até algumas lideranças dentro do Movimento Negro só transam com mulheres brancas e isto é uma forma de reprodução do esquema racista, sem sombra de dúvidas. Dentro da proposta do feminismo que a gente está tentando colocar, me parece fundamental não perder de vista a relação homem negro/mulher negra. Não é só a gente se olhar enquanto mulher negra, mas nos vermos na relação com o homem negro, e ele com a gente. Porque tem que ser uma coisa dinâmica, sobretudo porque fazemos parte de uma comunidade que é discriminada pela dimensão racial. E me parece que as respostas de parte a parte, até o momento, não são satisfatórias. De um lado nós temos uma postura muito machista de parte do homem negro, e eu vejo que a sua procura da mulher branca passa por aí. Pela nossa experiência histórica, juntos (homem negro/mulher negra), a gente se conhece muito bem, há toda uma cumplicidade no que diz respeito ao enfrentamento de uma série de questões. Mas no caso da mulher branca, ela não vivencia essa experiência da discriminação racial. Então acontece que, muitas vezes, os homens negros vão exercer seu machismo junto às mulheres brancas. De certa forma, o homem negro atualiza sua rivalidade com o homem branco na disputa da mulher branca. Ele tem, portanto, uma afirmação muito grande como macho e se acha então o rei da cocada branca. E a mulher negra fica jogada pra escanteio. O ressentimento surge pro aí. Acontece que os dois são muito carentes, há uma profunda carência de parte a parte. Na medida em que, no interior do movimento, nós mulheres constatamos isso, a coisa assume uma dimensão tão forte que, muitas vezes, nos leva a assumir as mesmas posturas do movimento feminista branco. Nós não podemos reproduzir mecanicamente as propostas de um movimento feminista ocidental judaico-cristão etc.

Jornal MNU - Quais são essas propostas?

Lélia Gonzalez - A questão da sexualidade tem que ser discutida num nível mais amplo e não no nível do orgasmo, pura e simplesmente. Estou propondo um orgasmo muito maior, um prazer e uma felicidade muito maiores. [...] Precisamos assumir uma posição mais equilibrada em termos dessa relação homem/mulher, por que eu não sou mulher sozinha, eu sou mulher com um homem, e é nessa relação que eu vou afirmar a minha mulheridade, numa relação de troca com o homem, se não a gente dança. E esses valores da cultura africana estão lá esquecidos no inconsciente da gente, e têm muito a contribuir no sentido do equilíbrio da relação homem/mulher. [...]

Jornal MNU - Quando falamos há pouco de ética e Movimento Negro, ficaram no ar algumas avaliações da militância que você poderia retomar agora para concluir.

Lélia Gonzalez - A questão ética no interior do Movimento Negro e também uma outra questão que se encaixa aí, a da perspectiva histórica. Uma consciência histórica que, de repente, a gente perde, na medida em que nos jogamos com tal intensidade para dentro do movimento, pensando como nossa contribuição é divina e maravilhosa (e aí entra a questão do narcisismo, que é preciso também exorcizar), a gente acha que vai resolver todas as questões numa vidinha que é a nossa vida. [...] A perspectiva é a de que a gente abra alguns caminhos e a gente tem que ter aí consciência da nossa temporalidade, ou seja, a gente vem e passa, vem e passa no sentido de passar mesmo e passa também a nossa experiência para quem está chegando. Aí é que me parece que os africanos podem nos ensinar muito. Precisamos ter a paciência revolucionária para verificarmos o seguinte: olha, sabe, não queira abraçar o mundo com pernas e braços, porque não dá jeito e, a partir daí, você tem consciência histórica da temporalidade, do processo, o que vai te permitir ter muito mais tranqüilidade no que diz respeito a tua inserção no movimento. Você adquire uma sabedoria. Você verifica sua temporalidade, seu tempo de inserção, o que você pode fazer, e tem a humildade de dizer: eu posso dar essa contribuição e darei com todo o carinho, mas eu não sou o único, não sou o salvador da pátria. [...] Graças a essa visão distorcida da realidade, tem ocorrido lutas internas terríveis, cobranças absurdas. [...] E o que acontece, muitas vezes, é que você sacrifica sua existência pessoal em função do movimento e temos verificado quantos companheiros se perderam no meio do caminho. Perderam-se por falta de clareza política, evidentemente, mas também porque jogaram de uma forma tal que, pare eles, a construção de sua própria vida era um negócio tão secundário porque eles estavam apostando única e exclusivamente no movimento. [...] Você tem que ter um equilíbrio. Eu vejo meu próprio caso, eu fui muito assim, é uma autocrítica o que eu estou fazendo também. Eu achava que tinha que estar em todas, me jogando loucamente, e meu projeto pessoal se perdeu muito, agora que eu estou catando os pedaços para poder seguir minha existência enquanto pessoinha que sou. [...] A questão da militância tem que ter esse sentido e aí nós temos que aprender com os nossos antigos, os africanos, esse sentido da sabedoria, esse sentido de saber a hora em que você vai interferir e como você vai interferir, fora desse lance individualista. É importante distinguir o seguinte: projeto pessoal não quer dizer individualismo, não. [...] Agora, no Movimento Negro você não vai crescer se misturar isso. Se misturou, dançou. Você vira fanático, que ninguém agüenta, que ninguém suporta. Acho que isso é fundamental e vai lhe permitir essa reflexão e ainda lhe permitir não cair na sedução da cooptação. [...]

* Crédito da fotografia da Lélia: Jornal do Brasil

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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