Mulheres Negras - do umbigo para o mundo
http://www.mulheresnegras.org

História Africana na Formação dos Educadores
Resenha do Curso

Henrique Cunha Junior
Prof. da Faculdade de Engenharia
Universidade Federal do Ceará

A história do Brasil ensinada nas nossas escolas é eurocentrica, por partir de uma visão de mundo do europeu e não combinar esta com outras matrizes de conhecimento e experiência históricas. As bibliografias e textos desconhecem a participação de africanos e afrodescendentes na construção intelectual e material do país. Estes descuidos sistemáticos e propositais levam à uma sub - representação de parte da população na história nacional, produzindo a sistematização das dominações e opressões. A história não é coisa do passado a ser decorada, ela informa e forma quem somos nós no presente e quais papéis devemos desempenhar na sociedade atual.

A história ensinada na formação atual, perde a cara da população e fica semelhante as visões dos dominadores, produzindo uma historia parcial, alienante e portadora de elementos de discriminações e racismos. Contém os mesmos problemas no referente a outras etnias, com relação as mulheres e as diversas regiões do país. Fica uma história presa ao machismo, ao regionalismo hegemônico e ao modo de representar o país brancocentrico. Oculta as diversas vozes e culturas processadas aqui. Esconde as verdades, forma as mentalidades alienadas, por vezes hostis às parcelas da população brasileira. Vejamos por exemplo, os casos das representações que temos de nordestinos e negros. Decorre daí um dos motivos que faz os brasileiros terem grande dificuldade em lidar com as origens étnicas, com a diversidade cultural e sobretudo de reconhecer e combater os racismos e machismos existentes no país.

A educação fala que somos resultantes da convivência cultural de três povos. Sendo que apenas um é estudado desde sua base histórica, anterior a 1500, e também dentro das representações históricas brasileiras posterior a esta data. A média dos brasileiros universitários tem grande dificuldade em nomear cinco produtos vindos da África e importantes para economia brasileira, como também teria mesma dificuldade em citar 5 Africanos ou Afrodescendentes destacados na história nacional. Existe a necessidade de mudar o caminho até hoje utilizado no ensino da história, que não é bom para a formação ética, moral e cidadã de todos. Precisamos introduzir a pluralidade cultural que retrate o país nos seus diversos sentidos. A história Africana é necessária a formação da população brasileira e dos nossos educadores

Por que estudar a Historia Africana ?

A principal razão para o estudo da história Africana é que sem ela se torna impossível bem conhecer a história do Brasil. Muitos fatores da história nossa ficam de compreensão falha, subestimados ou desprezados face a ausência da informação de raiz deste fatos históricos. Poucos são aqueles que compreendem que a cana de açúcar, o algodão e o café, são culturas não Européias, bastante desenvolvidas no passado da África e que associem este fato a composição da mão de obra brasileira durante o período escravista criminoso. São raras as interpretações do barroco brasileiro que estudem a presença de mão de obra artística de artesões de madeira vindos de Moçambique e Angola, como também destes mestres formando em associação com os Europeus às gerações de artistas Afrodescendentes. Embora as obras do período não carregem a assinatura nominal dos artistas, sendo muitas de anônimos, as marcas identitárias dos autores ficaram nos detalhes e nos rostos dos trabalhos. Essa leitura mais apurada da cultura do nosso barroco depende de um conhecimento maior da arte Africana. A nossa interpretação de Quilombos, como sociedades alternativas ao escravismo criminoso, como parte da nossa história política, muita além da idéia simples de negros fugidos para o mato, depende de conhecermos a complexidades das sociedades Africanas, das rotas de comércio e dos intercâmbios comerciais entre as nações Africanas, assim como, da gênese da idéia de Quilombo originária da África. O ato político pensado, por vezes negociado, foge da nossa perspectiva face o desconhecimento da base Africana. A ausência da formação e informação sobre a História Africana resulta numa raquítica visão da História do Brasil.

Outra importante razão para aprimorarmos os nossos conhecimentos sobre as nossas origens africanas está relacionada com as nossas identidades individuais e coletivas. Perguntando para crianças afrodescendentes sobre a origem dos seus antepassados, eles se referem apenas ao interior do país. Quando dos Eurodescendentes, com euforia e certo orgulho, citam e por vezes inventam algum país: França, Itália, Portugal, Espanha ou Polônia. Não importa exatamente o que eles declaram. Existe um desequilíbrio de informação que produz uma hierarquia de valores vinda do senso comum e resulta numa percepção inferiorizada da identidade. O racismo no Brasil se dá pela existência de uma teia de mensagens inferiorizantes, não pela via de outros países onde existe uma formulação de superioridade étnica. Erram os dicionários brasileiros por vezes nas suas definições. Descrições da origem tendo um avô loiro, de olhos azuis, europeu, e uma avó bugre cassada a laço, não explicam apenas a pele escura e a mestiçagem étnica recente. Traduz também um preconceito com o lado de pele escura. Bugre cassada a laço tem o conteúdo de selvagem, a ser domesticado pelo civilizado, o homem ( sendo sempre o homem) de pele clara.

A bandeira dos movimentos negros em demandar a introdução da História Africana nos currículos foi bastante acertada e providencial. Facilita uma percepção mais igualitária da História da Humanidade, introduz África como a origem do Homo sapiens, mostra as aquisições civilizatórias a partir de fontes culturais diversas e abre novas perspectivas para compreensão da História do Povo Brasileiro.

Inexiste a possibilidade de termos uma boa História da Brasil ensinada na escola sem o conhecimento da História Africana.

Qual a metodologia de estudo da Historia Africana?

Nos artigos, A História Africana na Formação de Professores (Cunha Jr - 1999 ) e A História Africana e os Elementos Básicos para o Seu Ensino (Cunha Jr - 1997), são apresentadas algumas possibilidade de bibliografia disponível no Brasil, uma possibilidade de ementa desta disciplina e sobretudo os obstáculos que têm sido encontrados quanto ao ensino da História Africana. Estes obstáculos estão ligados ao imaginário brasileiro construído numa visão desinformada e descontextualizada da África, presente na mídia nacional. Costuma-se dizer que não sabemos nada sobre a África, antes assim fosse, seria bom. O problema é que sabemos muitas besteiras, racismos e preconceitos, meias verdades ou o que é visto pelo Europeu como exótico.

A metodologia tomada para este curso visa organizar as culturas, a geografia e os povos como categorias constantemente relacionadas e interagindo de forma dinâmica. Assenta - se em vermos a matriz africana conectada com outras matrizes históricas, influenciando e sendo influenciada por elas. Colocar os povos africanos conectados numa rede complexa de relações internamente e externamente a todo continente africano. Produz um estudo de história tendo como referência o método de Milton Santos, apresentado na Metamorfose do Espaço Habitado (Santos -1988), onde o espaço é historicamente construído a partir da intervenção humana e das apropriações das disponibilidades materiais e imateriais desse espaço. Nós com base neste método estendemos para o conceito de Africanidades e Afrodescendência (Cunha Jr., 1996), fazendo sempre o entrelaçamento de etnia, gênero, classe e região na sistematização da compreensão dos espaços geográficos. Contribui para nossa visão a base do conhecimento africano que privilegia a dinâmica do complexo, ou seja, tudo esta em constante transformação e é produto de uma rede de relações.

Na nossa forma de pensar reconhecemos a diversidade dos grupos humanos sob o conceito de etnia, desconsiderando as abordagens de raça e raça social por acreditar trazerem sempre resquícios biologizantes das formulações que implantaram os racismos. Vendo também que a categoria cultura nos é primordial e ela se encaixa na perspectiva de etnia. Também tomamos o continente Africano como um conjunto devido a história em comum, sem a separação entre África Negra e uma outra possível não negra. Esta hipotética separação tem dificultado no imaginário social a inclusão do Egito no contínuo da História do Continente, também criando dúvidas sobre a origem étnica dos Egípcios. Fato que sofreu a imagem do desserviço do cinema, em ter caracterizado Cleópatra e os Egípcios com atores de origem Européia. Problema que afeta também os filmes bíblicos e transmitem a impressão em ser o Cristianismo de origem de povos Europeus, quando não o é.

A metodologia também nos obriga uma constante vigilância com as terminologias utilizadas. As palavras contêm idéias, conceitos e preconceitos. São forças criadoras, ricas de semânticas, indicam conhecimentos cristalizados e manipulados por grupos de interesses. Para termos uma boa história, tomada do ponto de vista das classes populares e de interesse dos afrodescendentes, precisamos de rígida revisão dos dicionários. São ruins os textos onde o negro aparece como sinônimo de escravo. A África como terra dos escravos.A África como continente selvagem. Onde existe escravo e senhor de escravos. Tratamos como escravizados e escravizadores criminosos. Temos a África como Berço da Humanidade e Terra dos nossos Ancestrais. Viemos para cá em imigrações forçadas de cativos Africanos, oriundos de nações Africanas como o Congo, Mutapa, Gana, Ndongo, Daomé, etc, etc.

O curso primeiro aborda as percepções brasileiras sobre a África, numa discussão que visa exorcizar as bruxas dos racismos e preconceitos. Lembramos que as bruxas não existem nos contos Africanos, que são criações Européias, vindas do passado religioso Europeu. Depois mergulha na Base Cultural Africana através do pensamento e das concepções de sociedade. Passamos então à geografia das bacias fluviais em torno as quais surgem as mais destacadas organizações sociais, reinos, impérios e países. Associamos a estas bacias as disponibilidades econômicas e introduzimos os ciclos de comércios de longa distância para expor a complexa rede de conexões da África no seu interior e dela com o restante do mundo. Focalizado nas bacias hidrográficas temos os blocos de países e povos do: Rio Niger, Rio Congo, Rio Zambeze e Rio Nilo. As sociedade e economias da África do Norte aparecem ligadas as extensões das civilizações do Niger e do Nilo. Assim como o ciclo de cidades-Estado Suarili, do Oceano Índico, aparece vinculada a economia do vale do Zambeze. Nesta parte os textos de base são os da História Geral da África (Ki- Zerbo - 1981) e o Bantos, malês e identidade negra (Lopes - 1988). As duas últimas partes apresentadas tratam da diáspora Africana e das origens do escravismo criminoso nas Américas, como também das reações Africanas contra as inovações Européias e a retirada de cativos Africanos para escravização criminosa nas Américas. Estas têm como referência o espetacular texto do historiador Guianense Walter Rodney , Como o Europeu Subdesenvolveu a África (Rodney - 1975). O curso não tem propositalmente um rígido respeito a cronologia, deixando para o final uma retrospectiva que reorganiza a informação e que obedece alguma cronologia de ordem histórica.

A necessidade da base do pensamento Africano

Compreender a História Africana é compreender a formação de sentidos nestas culturas, das quais as outras diferem muito, vindo deste fato a dificuldade que eles têm de nos interpretar. Ocorre que por esta razão nos tomaram por simplórios, expressando assim o simplório das desinformações deles. Diríamos que a ignorância é a origem da prepotência.

Na cultura Africana e Afrodescendente são importante os ritmos, não apenas musicais, mas os diversos contidos nas matemáticas, nas formas de geometrias e desenhos (Gerdes - 1993), na arte, nos mitos e nas formas de falar e fazer literatura. As circularidades são importantes nas concepções africanas. Na visão Africana os seres excutam um contínuo ir e vir entre existências diversas. Estas representações circulares englobam a idéia de cabeça como centro da existência humana e de comunidade como motivo principal das existências humanas. Nas concepções africanas, o universo e a terra sempre foram concebidos como esféricos e em movimento. Fato que deu uma organização diferente no passado das astronomias Africanas com relação às Européias. Em algumas sociedades as circularidades aparecem na disposição das casas no espaço urbano e mesmo na sua forma construtiva. A ancestralidade e o respeito devido aos ancestrais são definidores de uma concepção de sociedade africana.

A Palavra e o respeito que se tem a esta também definem marcas importantes na sistematização e compreensão do pensamento. A Palavra é uma fonte de criação, dada a sua importância em alguns grupos de pensamento filosófico Africanos onde o conhecimento deve ser transmitido de forma oral. Tal preceito esta nas filosofias Yorubás e Bantos e foram conservadas no Brasil na transmissão de conhecimento nos terreiros de religiões de base Africana. Devemos marcar que mesmo os diversos recursos de escritas existentes no passado Africano não substituíram a importância da oralidade como conceito e método. Os textos, O mundo se despedaça do escritor Nigeriano Achibe Achebe (Achebe - 1983) e Sundjata ou a Epopéia Mandinga do doma (homem do saber) e também professor universitário Senegalês Djibril Niane (Niane - 1982), são indispensáveis para esta introdução ao pensamento Africano, somados a eles também recomendamos Na Casa de Meu Pai, de Kwame Appiah (Appiah - 1997) e Muntu :African Culture and Western World de Janheinz Jahn (Jahn - 1990)

O traje africano

Poderíamos materializar a exemplificação dessa Introdução a História Africana para Educadores através de diversos conteúdos e procurando alguma interdisciplinaridade. Poderíamos também fazê-lo de formas especificas e concentradas em áreas como na literatura, nas artes, nas tecnologias, na filosofia ou na botânica. Sim, botânica. São inúmeras as espécimes transplantadas da África para o Brasil, por motivos diversos: econômicos, religiosos, sanitários e hábitos africanos como a culinária ou os símbolos de status social e de poder. A utilização das literaturas africanas e o trânsito transformador para produção brasileira nos é dado pela boa abordagem no texto de Luis Carlos Santos. Sobre as artes temos alguns textos dentro os quais se destacam os da Heloisa Leuba, sobre A Grande Estatuária Sange do Zaire (Salum - 1990) e o da Cecília Calaça, com O Fenômeno da Arte Afrodescendente nas Obras de Artista Contemporâneos (Calaça - 1998 ). Nesta disciplina introdutória tomamos "O Traje Africano" como forma de materialização e exemplificação de conceitos e diversidade cultural africana, como também do elo África - Brasil. A escolha foi proposital, pois sobre a idéia dos africanos vindo das tribos dos homens nus repousa vários dos preconceitos do imaginário social brasileiro sobre a África, Africanos e nós Afrodescendentes. A nudez do escravizado no Brasil é apresentada simbolicamente como a de uma possível ausência de cultura e de civilização. As imagens dos livros didáticos de história do Brasil reforçam esta imagem geradora de preconceitos e de reducionismo do pensar a história. Deixam de apresentar as diversidades de imagens que temos de Africanos e Afrodescendentes em situações variadas no período do escravismo criminoso no Brasil. Com mais detalhes falamos dessa relação da Imagem e Imaginário na História Africana e do Brasil em um texto recente ( Cunha Jr.- 2001 ).

Começamos a história dos teares e das manufaturas têxteis no continente africano na história antiga do Egito e das histórias da África Ocidental, anterior a grande expansão predadora Européia na África. Sobre esta última e intimamente ligada a colonização africana no Brasil apresentamos as técnicas, estilos e importância da produção. Tomamos imagens e fotografias de trajes da África e depois de trajes de Africanos e Descendentes no Brasil, vindo até hoje no que restou das roupas das Baianas, das Congadas e Maracatus e das Religiões de base Africana. Os trajes da atualidade compuseram um rico discurso palpável visto que a professora Vanderly esteve neste ano no Mali, país da África Ocidental e trouxe esplendida coleção de roupas que deixou os participantes do curso admirados. "Ah a roupa Africana é assim! Puxa e nós que fizemos um desfile africano na escola totalmente desinformado fazendo amarrações de panos enrolados nas pessoas e pensando que aquilo fossem roupas do continente, estilizadas".

Referências Bibliográficas

Appiah, Kwame. Na Casa de Meu Pai: África na Filosofia da Cultura. Contra Ponto - Rio de Janeiro - RJ - 1997.

Calaça, Maria Cecília. O Fenômeno da Arte Afrodescendente: O estudo da obra de Reinaldo do Rego e Jorge dos Anjos. Mestrado em Artes - UNESP - SP - 1998.

Cunha Jr, Henrique. A Historia Africana na Formação dos Educadores. Cadernos de Apoio ao Ensino. Universidade Estadual de Maringá - UEM - numero 6 - Abril - 1999 - Maringá - PR. Pp.61-77.

------------------------ Imagens na Escola - África na Escola. Mimeografo - Fortaleza - CE - 2001.

------------------------ A História Africana e os Elementos Básicos para o seu Ensino.Revista do NEN - Negros e Currículo. Número 2 - Novembro de 1997 - Florianópolis - SC.

------------------------ Afrodescendência e Africanidades Brasileira: A condição necessária, porém não suficiente para compreensão da história sociológica do povo brasileiro. Mimeografo. Texto de Curso de Educação e Africanidades Brasileira. Mestrado em Educação . UFPI - Teresina - PI - 1996.

Gerdes, Paulus. Geoemtria Shona. 1993.

Jahn, Janheinz. Muntu : African Culture and Western World. Grove Weidenfeld - New York - NY - USA.

Ki-zerbo,I. História Geral da África. Atica - São Paulo - SP - 1981.

Lopes, Nei. Bantos, malês e identidade negra. Forense - Rio de Janeiro - RJ -1988.

Salum, Martha Heloisa Leuba. A Grande Estatuaria Sange do Zaire. Tese de Doutoramento - USP - São Paulo - SP - 1990.

Santos, Luis Carlos. Mestrado em Sociologia - USP - SP - 1995.

Santos, Milton. Metamorfoses do Espaço Habitado. HUCITEC - São Paulo - SP. 1988.

 

 

Fechar